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domingo, 30 de dezembro de 2012

O Sangue do Ombro de Pallas





Por Daniel Dreiberg

O Texto a seguir é reimpressão do Jornal da Sociedade Ornitológica Americana, outono de 1983.
 
 
Será possível estudar um pássaro tão de perto, observar e catalogar suas peculiaridades em detalhes tão minuciosos, que o mesmo se torna invisível? Será possível que, enquanto medimos fastidiosamente a envergadura de suas asas ou o comprimento de seu tarso, acabamos perdendo a visão de sua poesia?

Será possível que, em nossas prosaicas descrições de plumagens marmóreas ou vermiculadas, perdemos a visão de pinturas vivas, uma sucessão de tons de marrom e dourado que envergonharia Kandinsky ou explosões de luz e cor à altura de Monet? Eu creio que sim. Acredito que, ao estudarmos nosso objeto com a sensibilidade de um estatístico ou de um dissector, nós nos distanciamos cada vez mais das maravilhas e encantamentos da imaginação.


A menos que nossas observações sejam imbuídas de discernimento poético, elas não passarão de gemas opacas, pedras semi preciosas que não valem a pena ser colecionadas.

Olhando para um falcão, notamos pequenas diferenças na largura das linhas de haste da plumagem inferior, onde os egípcios viram Horus. Porém, até conseguirmos transformar nossos simples conceitos em visões genuínas, até nossos ouvidos estarem maduros para captar uma sinfonia no estridente pandemônio de um aviário, talvez tenhamos adquirido um hobby, mas não uma paixão.

Eu tinha verdadeira paixão por corujas quando criança. Durante os longos verões no início dos anos cinquenta, enquanto o resto do país observava os céus à procura de discos voadores e mísseis soviéticos, em plena noite, eu costumava correr pelos campos da Nova Inglaterra para meu ponto de obervação. Ali posicionava-me e esquadrinhava o céu na esperança de ver um tipo de espetáculo diferente: o vôo de uma coruja em busca de alimento.

Mas minha paixão perdeu-se inadvertidamente, como minério cintilante metamorfoseado num banal e opaco sistema de arquivos. Essa mudança paulatina passou despercebida e tornou-se um hábito. Só recentemente consegui vislumbrar o filão precioso através da poeira acumulada de estudos metódicos e acadêmicos: no estacionamento de um hospital em Maine, quando ia visitar um amigo que fora internado, eu divisei de repente o pio de uma coruja caçadora.

Tratava-se de um velho pássaro. Seu grito decrépito propagava-se loucamente através do céu escuro e gelado. O som me deixou petrificado. Consiste em falácia a crença de que corujas gritam para atrair as presas. Seu grito, na verdade, é uma voz do Inferno, capaz de transformar ratos selvagens em estátuas e prender doninhas ao solo. Em meu instante de paralisia, postado no brilhante calçamento entre os carros estacionados, eu compreendi a razão oculta daquele som. Com aguda clareza, do mesmo modo que o compreendia quando era garoto. No infinito momento que se descortinava, senti-me solidário com as pequenas criaturas que, mais vulneráveis que eu, quedavam-se imobilizadas de medo. Trepada no galho com fixidez desconcertante, sorvendo a escuridão pelas pupilas dilatadas e sedentas, a coruja localizara seu jantar. Ignorando qual de nós havia sido escolhido, eu fiquei de pé, congelado, junto com os roedores do campo. Meu coração martelava à espera do súbito ataque das garras afiadas. As penas das corujas são macias e fofas, e não fazem um ruído sequer quando investem através do ar. Sua vítima nunca sabe o momento em que será atacada.

Então, em algum lugar, na sombra do crepúsculo que circundava o hospital iluminado, pareceu-me ter ouvido uma pequena criatura emitir seu derradeiro clamor. Os segundos se arrastavam. Eu podia mover-me novamente, assim como todos os invisíveis habitantes da mata. Aliviados. Salvos. A coruja não mais gritava por nós. Podíamos continuar com nossos afazeres noturnos, com nossas vidas. Não estávamos nos contorcendo, sem forças, na escuridão sufocante e fétida, com a cabeça entrando pela goela do predador e nossos rabos pendendo, patéticos, do bico da cimitarra, antes de nossas patas posteriores e cintura pélvica finalmente serem lançadas para fora.

Embora eu tivesse recuperado minhas habilidades motoras, descobri que meu equilíbrio não retornaria com a mesma facilidade. O impulso de experimentar, e não simplesmente de registrar, reascendeu-se dentro de mim, estimulando os processos do pensamento e auto-avaliação que me levou a este artigo.

Como já deixei transparecer antes, não significa que eu tenha abandonado os esforços e pesquisas acadêmicas relacionadas a esse campo para fugir e viver uma existência primitiva nos bosques. Pelo contrário: dediquei-me aos estudos com ânimo renovado, contemplando fatos insípidos e descrições áridas sob a mesma luz que os favorecera quando eu era criança. A compreensão científica do movimento sincronizado e articulado das plumagens de uma coruja durante o vôo não impede a apreciação poética desse mesmo fenômeno. As duas se realçam: um olho mais lírico  empresta aos dados frios o romance do qual eles se divorciaram há muito tempo.

Mergulhando avidamente nas referências de livros empoeirados, eu deparei com passagens esquecidas, que me deixaram sem fôlego, e tomos de aspecto sombrio que se revelaram como arcas de tesouro contendo maravilhas iridescentes. Redescobri antigos trechos de prosa descritiva e a violenta essência de seu conteúdo. Tropecei, mais uma vez, no conto absorvente de T. A. Coward sobre seu encontro com a Águia Coruja: “Na Noruega, vi um pássaro que fora pego em seu próprio ninho, mas ele não só assumiu uma atitude típica de aterradora, como fez freqüentes investidas ao arame, golpeando-o com os pés. Como a plumagem eriçada, moldou sua cabeça entre as asas e disparou uma rajada de altos estalos com seu bico. Mas o que mais me impressionou foi o cintilar intenso dos seus olhos enormes.”

É claro que também há o conto de Hudson sobre a Águia Coruja magalânica que ele feriu na Patagônia: “Os olhos eram de uma cor laranja brilhante, mas, cada vez que eu tentava me aproximar do pássaro, eles se tornavam grandes globos ígneos com pupilas negras que dardejavam faíscas amarelas no ar.” Em palavras quase esquecidas, como as acima mencionadas, eu aprendi um pouco de intensidade apocalíptica que senti naquele estacionamento em Maine.

Atualmente, quando observo um espécime de Carine Noctua, tento transcender o moro cinza de suas unhas e as manchas brancas dispostas em linhas caprichadas. Em vez disso, procuro olhar o pássaro cuja imagem os gregos entalharam sem suas moedas: empoleirado tranquilamente no ombro da deusa Pallas Athena, compartilhando em silêncio de sua sabedoria imortal.

Em lugar de medirmos os tufos de penugem que cobrem seus ouvidos, talvez devêssemos especular o que essa ave ouviu. Talvez, se considerássemos a maneira como ela segura seu galho, com duas garras à frente e outra atrás, devêssemos parar por um momento e admitir que tais garras podem ter, em alguma ocasião, arrancado sangue do ombro de Pallas.


 
MOORE, Alan. Watchmen: um irmão para os dragões. Tradução e adaptação: Estúdio Criarte. nº 4. DC Comics Inc. São Paulo: Editora Abril, 1989, p. 29-32.