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quarta-feira, 16 de maio de 2012

Os Nove da Fama



Os Nove da Fama são os nove príncipes legendários que personificam os ideais da cavalaria, quiçá a maior de todas as instituições humanas da Idade Média. No idioma de Denis Diderot, eles são chamados de Les Neuf Preux, que em tradução livre (e não menos literal) poderia soar como “os nove valentes”,  termo que passa uma ideia mais precisa do tipo de virtude moral que foi considerada para a escolha daqueles soldados que passariam a ser sinônimo dos elevados ideais cavaleirescos. Na Itália eles são conhecidos como Nove Prodi. Em inglês o termo utilizado para designá-los é Nine Worthies.

Os escolhidos compõem três grupos triádicos orientados pelas religiões que professaram: três gentios (Heitor, Alexandre e Júlio César); três judeus (Josué, Davi e Judas Macabeu); e três cristãos (o Rei Arthur, Carlos Magno e Godofredo de Bouillon).

Esses grandes cavaleiros representam todas as facetas do guerreiro perfeito. Com exceção de Heitor e Arthur, todos são heróis conquistadores. Aqueles que não eram príncipes vieram de famílias da aristocracia. No universo da cavalaria seus predicados e suas virtudes são reconhecidas por sua atemporalidade e universalidade. Todos trouxeram glória e honra para suas nações, e foram conhecidos por sua habilidade pessoal nas armas. Individualmente, cada um exibia alguma qualidade excepcional que os tornou o modelo de cavaleiro.


Os três cristãos, os três gentios e os três judeus
Sobre a etimologia da palavra cavaleiro, o professor da Universidade de Paris, medievalista e historiador das cruzadas e das ordens militares Alain Demurger esclarece que, no decorrer da Idade Média, a cavalaria evoluiu até se tornar a principal arma dos exércitos e, com isso, o cavaleiro atingiu o status de “modelo de combatente”. Demurger conclui:

[...] A palavra miles (plural milites) designava isso [a cavalaria]. Mas essa palavra, embora mantendo o sentido técnico daquele que combate a cavalo, foi contaminada por um sentido ético, passando a designar a elite dos combatentes a cavalo. As línguas vernáculas, em sua maior parte, distinguiram esses dois sentidos com duas palavras: cavalier-chevalier em francês, ritter-reiter em alemão, knight-rider ou horse-man em inglês, em contrapartido, Cavaliere em italiano e Caballero em espanhol permanecem únicas.

Por outro lado, a reunião desses soldados de tão diversas culturas ressalta certo sincretismo religioso, que se revela nessa expressão que harmoniza a reverência aos heróis da antiguidade e a plenitude, alcançada com a redenção do Ocidente, proporcionada pelo cristianismo. A trindade não foi escolhida a esmo, pois ao número 3 é atribuída também a trindade de Deus: O pensamento (sabedoria), a ação (força) e o amor (beleza).

Ainda sobre a simbologia do número 3, Genaro Ladereche Figoli acrescenta [2] que o 3 “é o primeiro número perfeito e completo de energia, pois observando o primitivismo do 1 somado ao antagonismo do 2, é gerado o equilíbrio perfeito, representado pela tríade”
Os Nove da Fama
Os Nove da Fama foram descritos pela primeira no início do século XIV, por Jacques de Longuyon em sua obra Voeux du Paon de 1312. É certo que os Nove possuem estreita ligação com o gênero literário romance de cavalaria. A lendária tríade de tríades, formada por homens considerados, cada qual em seu sua tradição particular, como paradigma. A figura dos Nove da Fama logo se tornou um tema comum na literatura e na arte da Idade Média e ganhou um lugar permanente na consciência popular.

Arthur, Carlos Magno e Godofredo
 Miguel de Cervantes Saavedra, em seu clássico Dom Quixote, faz menção aos intrépidos Neuf Preux no Capítulo V, intitulado Onde se prossegue a narrativa da desgraça de nosso cavaleiro. Na cena, Dom Quixote oferece uma réplica ao seu vizinho Pedro Alonso, que acabara de dizer que não era D. Rodrigo de Narvais e que tampouco ele (Dom Quixote) era Valdovinos ou Abindarrais:

 – Sei quem sou – respondeu Dom Quixote – e sei que posso ser não somente os que disse, mas todos os doze Pares de França e, ainda, todos os Nove da Fama, já que minhas façanhas ultrapassarão as de todos eles juntos e as de cada um de per si. [3].

No Capítulo XX [4], daquele que foi eleito O melhor livro de todos os tempos [5], o Manco de Lepanto [6], coloca novamente os Nove da Fama na boca de Dom Quixote:

– Sancho amigo, hás de saber que nasci, por vontade do céu, nesta nossa idade do ferro, para ressuscitar nela a de ouro, ou a dourada, como sói chamar-se. Sou aquele para quem estão reservados os perigos, as grandes façanhas e os feitos valorosos. Sou, repito, quem há de ressuscitar os cavaleiros da Távola Redonda, os Doze de França e os Nove da Fama, e o que há de fazer esquecer os Platires, os Tablantes, Olivantes e Tirantes, os Febos e Belianises, com toda a caterva dos famosos cavaleiros andantes das eras passadas, realizando, nesta época em que vivo, tais grandiosidades, estranhezas e feitos de armas, que escureçam os que eles fizeram mais brilhantes. [7].

Alexandre, Heitor e César
Para nós, que vivemos nesse século da ciência, em que a Historiografia ainda se mostra incapaz de confirmar se realmente houve uma Guerra de Tróia, afigura-se, no mínimo, curiosa a presença de Heitor de Tróia na lista de notáveis. Ao longo dos anos, por exemplo, muitos se ressentiram da ausência de Aquiles, que poderia substituir Heitor entre os gentios. Por meu turno, apoio uma pequena alteração na tríade dos pagãos, conquanto me declare incapaz de contestar Alexandre e César. O único que sobraria seria Heitor e, portanto, tenho que, no lugar do Filho de Príamo, a lista poderia perfeitamente apresentar Aníbal ou Cipião, mas seria preciso uma segunda Zama [8] para uma justa escolha entre ambos.

David é a figura mais mítica, e talvez a de maior relevo, entre os três cavaleiros judeus. Considerado o maior rei de Israel, e de reconhecido talento em diversas searas, como a música e a poesia. Não a esmo, é atribuída ao Rei Davi a autoria do Livro dos Salmos. Um dos eventos mais conhecidos de sua vida foi o embate contra o gigante guerreiro filisteu Golias. Josué, por seu turno, liderou o povo escolhido nas importantes  conquistas das cidades-estados da terra de Canaã. Não menos importante, foi Judas Macabeu, o “Judas Martelo”, conforme indica a  transliteração do hebraico do significado do termo “macabeu”. Judas Macabeu ganhou notoriedade quando Antióco determinou a destruição da fé Judaica e a helenização dos Judeus. Graças a ele, no futuro, pôde existir o cristianismo.

Judas Macabeu, Davi e Josué
 Entre os cavaleiros cristãos, o mais famoso foi aquele que talvez não tenha existido, ou pelo menos não tenha existido na forma com que foi representado nos famosos romances de cavalaria: O Rei Arthur. Até hoje, os historiadores divergem sobre a lenda arthuriana e se revelam incapazes de assegurar se houve um personagem histórico correspondente na Bretanha, logo após a evacuação romana, na Alta Idade Média. Godofredo de Bouillon foi o primeiro governante de Jerusalém após a sua tomada aos muçulmanos pelos cristãos na Primeira Cruzada. Descrito como o líder das cruzadas, o rei de Jerusalém (em que pese, tenha recusado o trono) e legislador de escol. Por fim, o irrefutável Carlos Magno, fundador do chamado Império Carolíngeo, o filho de Pepino, o Breve, foi um dos homens mais importantes da História, porquanto seus feitos refletiram diretamente na posterior formação das identidades nacionais na Europa.

Os Nove da Fama em estílo gótico na antiga câmara municipal em Colônia na Alemanha
 O arco longo inglês pôs fim à saga dos cavaleiros na Europa em batalhas decisivas como de Poitiers, Crécy e Azincourt. Não obstante, a cavalaria jamais soçobrou. Os Nove da Fama continuam a impactar o imaginário popular nos dias de hoje e seus exemplos de coragem, bravura e honra permanecem incólumes, como faróis a guiar o ocidente e mote a fomentar a inspiração do moderno romance de cavalaria: o romance histórico.
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[1] DEMURGER, Alain. Os Cavaleiros de Cristo: Templários, Teutônicos, Hospitalares e outra ordens militares na idade média.Tradução de André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 2002, p. 10.

[2] Disponível em: http://espacodomacom.blogspot.com.br/2008/09/simbologia-dos-nmeros.html, acesso em 15/05/2012, às 17h44min.

[3] CERVANTES SAAVREDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha, v.1.Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 142.

[4] O Capítulo XX intitula-se: Da nunca vista nem ouvida aventura, que jamais, e com pouco mais perigo, foi concluída por nenhum famoso cavaleiro no mundo, mas a concluiu o valoroso Dom Quixote de La Mancha.

[5] Em 2002, a obra de Miguel de Cervantes Saavreda, Dom Quixote, foi eleita a melhor obra de ficção do mundo por um júri composto por escritores famosos. O livro foi escolhido com 50% mais votos do que qualquer outro. Participaram da votação, organizada pelo Instituto Nobel de Oslo, em cooperação com os Clubes do Livro da Noruega, 100 escritores consagrados de 54 países. A cada um deles, foi solicitada uma lista dos dez melhores livros. Da Alemanha, participaram Siegfried Lenz, Hans Magnus Enzensberger, Christoph Hein, Herta Müller e Christa Wolf. Outros ilustres foram Paul Auster (EUA), Carlos Fuentes (México), Cees Nooteboom (Holanda), Susan Sontag (EUA), John Le Carré (Grá-Bretanha), o indiano Salman Rushdie, o trinidadiano V.S. Naipaul, o nigeriano Wole Soyinka, o chinês Bei Dao.


[6] A Batalha de Lepanto (1571) - A Cruz do Ocidente enfrenta a Lua Crescente do Islã em uma das batalhas navais mais decisivas que se travou no Mediterrâneo. Os turcos assolavam a Europa havia mais de um século e desde 1453, quando tomaram Constantinopla seu poder e influência apenas cresceu. Em 1570, os Otomanos invadiram a Ilha de Chipre, então na posse da República de Veneza. Os venezianos, enfraquecidos, viram-se obrigados a pedir ajuda, já que a posse de Chipre permitiria aos turcos o domínio do Mediterrâneo. O Papa Pio V reuniu uma grande esquadra composta pelas marinhas da República de Veneza, Reino de Espanha, Cavaleiros de Malta e dos Estados Papais, sob o comando de João da Áustria, formando a então chamada Liga Santa. A liga enfrentou duzentas e trinta galés turcas ao largo de Lepanto, na Grécia, a 7 de Outubro de 1571. De um lado lutaram Ali-Pachá e Uluch Ali e do outro Andrea Doria e o Príncipe D. João de Áustria. A vitória cristã refreia a expansão muçulmana e marca a última grande batalha de galeras do Mediterrâneo. Entre os feridos do lado cristão, o homem que ficou conhecido como o Manco de Lepanto e posteriormente passaria a história como o autor de Dom Quixote: Miguel de Cervantes.

[7] CERVANTES SAAVREDRA, Miguel de. Dom Quixote de La Mancha, v.1.Tradução de Almir de Andrade e Milton Amado. Rio de Janeiro: Ediouro, 2002, p. 283.

[8] Cipião derrotou Aníbal na Batalha de Zama em 202 a.C. e pôs fim à Segunda Guerra Púnica.